Disciplina - Lingua Portuguesa

Português

13/08/2015

Conheça os Mashups Literários

Grandes nomes da literatura brasileira ganham versões de suas obras mixadas com elementos pop


Por Lívia Brandão - O Globo

RIO - Jane Austen tem passado por um intenso revival pop. A escritora inglesa, morta há quase dois séculos, jamais deixou de vender (muitos) livros, mas agora sua obra conta com a forcinha de artifícios modernos para se recriar. Foi ela que deu início à febre mundial de paródias literárias, que renderam uma versão em que a autora é uma vampira bicentenária ("Jane Austen - a vampira", do selo Lua de Papel da Leya Brasil) e até um filmete intitulado "Jane Austen's fight club", em que a personagem Elizabeth Bennet comanda um clube da luta como o criado por Chuck Palahniuk e filmado por David Fincher em 1999.

Seguindo os mesmos princípios, os americanos Seth Grahame-Smith e Ben H. Winter foram responsáveis pela inusitada mistura de "Orgulho e preconceito" e "Razão e sensibilidade" com zumbis e monstros marinhos (Editora Intrínseca). Esses mashups literários, um tipo de renovação pouco ortodoxa de grandes clássicos, inspiraram versões brasileiras que se apoiam em cânones da nossa literatura e acabam de chegar às prateleiras. Aqui, é Machado de Assis a nossa Jane Austen de bigodes. Se estivesse vivo, o Bruxo do Cosme Velho veria Bentinho e Capitu em meio a ETs, Simão Bacamarte investigando mutantes e Brás Cubas vivendo como um zumbi sanguinário. (Leia trechos dos mashups literários brasileiros )

Em "Memórias desmortas de Brás Cubas" (Tarja), Pedro Vieira buscou atualizar a trajetória do defunto autor que, por suas mãos, tornou-se um morto-vivo. Já "Dom Casmurro e os discos voadores" e "O alienista caçador de mutantes" (Lua de Papel) inserem sci-fi em meio às tramas originais, fazendo com que os escritores Natalia Klein e Lucio Manfredi se tornassem coautores de Machado.

- Eu só não gostaria de encontrá-lo na rua - brinca Natalia, que se viu às voltas com a árdua tarefa de macular um dos seus livros preferidos fazendo referência a elementos hoje corriqueiros como Facebook, Twitter e disque-pizza, mas que jamais fariam parte do universo de Machado de Assis. Assim como miolos, sangue e terror.

- "Memórias póstumas de Brás Cubas" era a escolha mais óbvia para escrever um livro deste tipo. Machado deu a deixa para uma história de zumbis ao criar um personagem que se autodenomina defunto autor - justifica Vieira - Em "Memórias desmortas", o famoso emplastro de Brás Cubas foi o responsável por sua "zumbificação", e ele esbarra em outros personagens machadianos, que são devidamente devorados e transformados em mortos-vivos.

Mas não pense o leitor que a brincadeira para em Machado: outros dois lançamentos da Lua de Papel são "A escrava Isaura e o vampiro", em que Jovane Nunes emprestou o apelo pop dos bebedores de sangue de dentes afiados à trama de Bernardo Guimarães, e "Senhora, a bruxa", uma "parceria" de Angélica Lopes e José de Alencar.

- "Senhora" é quase um folhetim. Por ser centrado numa história de vingança, poder e sedução, achei natural representá-lo por meio de bruxas - conta Angélica, que usou sua experiência com livros adolescentes e roteiros de novelas para adicionar ao cotidiano da senhora Aurélia as magias das bruxas-irmãs Blair, inspiradas por filmes como "Bruxas de Salém". E não são só as feiticeiras a revirar o mundo da protagonista: os quatro parentes da protagonista Aurélia que morrem no original reaparecem agora como fantasmas. Alvo principal é o público jovem.

Engana-se quem pensa que pegar uma história pronta e adicionar a ela novos elementos é um exercício fácil. Os autores da coleção da Lua de Papel tiveram apenas dois meses para se debruçar sobre as obras - todas de domínio público - e alterar estrutura e linguagem. O objetivo? Fazer de cada clássico uma obra mais palatável ao público jovem, alvo maior da moda dos mashups literários.

- Dei uma rejuvenescida na história - confessa Natalia, autora do blog Adorável Psicose. - Quando li "O alienista" pela primeira vez, tive que recorrer ao dicionário para descobrir o significado de algumas palavras. Muitas eram comuns entre os leitores da época em que ele foi escrito, mas caíram em desuso. Achei melhor remover esses "obstáculos" para não afastar o leitor jovem, já que a proposta é justamente atraí-lo.

Para Angélica, a maior dificuldade neste sentido foi lidar com as descrições minuciosas de José de Alencar:

- "Senhora" é muito detalhista. Tentei deixar o andamento mais ágil, mas respeitei os momentos-chave e as características principais de cada personagem. Alguns até cresceram.

Já Vieira coloca a culpa pelas alterações estilísticas no personagem-título de "Memórias desmortas".

- Na trama, que se passa em 2010, o próprio Brás Cubas se preocupa com a aceitação livro entre os adolescentes, forçados a ler suas "Memórias póstumas" nas aulas de literatura. Por isso, ele tenta adaptar sua própria linguagem, cogitando até o uso do "miguxês" (o dialeto em que se "iXcReVi aXxXim", usado na internet). Como até o Brás Cubas zumbi tem pudores, ele logo descarta a ideia, mas também não usa uma mesóclise sequer.

Tanta deturpação é alvo fácil para críticas. Quem se desvia das prováveis pedras a serem atiradas pelos defensores da literatura tradicional é Pedro Almeida, editor da Lua de Papel, que rechaça o rótulo de descartável de sua nova coleção.

- Na escola, os adolescentes têm que ler livros escritos para adultos há um século ou mais. Isso cria uma barreira entre eles e os autores. Revisitar um clássico através de um mashup ou de uma paródia é um meio de criar interesse e estebelecer um novo contato com o autor - justifica Almeida, que prometeu três novos mashups para breve. - Serão clássicos recentes, de autores vivos ou mesmo mortos há pouco tempo... - despista. Pelo visto, a moda só está começando.


Esta notícia foi extraída em 13/08/2015 do site www.oglobo.globo.com. Todas as informações são de responsabilidade dos autores.
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