Disciplina - Lingua Portuguesa

Português

10/07/2017

O aprendizado que vem com a (re)leitura

Por Eduardo Timbó

Por que costumamos dar mais ênfase à primeira leitura e esquecemos que a releitura de um romance, um poema, um conto etc. é tão ou mais valiosa? Reler um texto que já nos foi caro é, em geral, uma experiência instrutiva que põe em confronto duas versões de leitor.

Dizem que a segunda vez é bem melhor que a primeira. Será mesmo, caro leitor? Só para ficar claro, estamos falando de uma atividade que costuma despertar uma gama de prazeres quase inenarráveis em seus praticantes, a leitura.

Peço ao leitor que procure relembrar algum livro ou verso lido e do qual tenha guardado a mais íntima afeição. Pode ser um romance lido na adolescência, ou um livro que traga à tona as dores e as delícias de quando estava na faculdade; pode ser até mesmo um poema lido ano passado, mas que tenha mexido com seus brios.

Muito bem, em algum momento sentiu-se atraído a realizar uma segunda leitura do livro ou verso em questão? E como foi para você?

Essa segunda leitura, muitas vezes suscitada por estímulos bem diferentes dos da primeira vez, pode também levar a novas reações e descobertas não apenas do universo textual que temos em mãos, mas de nós, seus leitores.

A primeira leitura – diria que quase independente da idade em que seja realizada – carrega o inevitável frescor do primeiro encontro. Através de uma equação refinada, esse momento consegue despertar sentimentos, impressões e lembranças que podem nos fazer, literalmente, perder a hora.

Eu mesmo já passei do ponto de ônibus onde devia saltar, pois não podia sair dali antes de terminar aquele capítulo, parágrafo, frase etc. E apressar a leitura não é uma opção válida nesse caso. Em geral, não queremos saber apenas o que vai acontecer no próximo instante, mas também saber como foi que tudo aconteceu; enfim, experimentar o impacto das palavras que estão sendo ditas.

A segunda leitura, geralmente feita num espaço de tempo razoável – em geral, um ano, mas que pode chegar até a uma década – esclarece muitos pontos obscuros ou mesmo relegados por nós leitores desde a nossa leitura inicial.

No caso dos romances, thrillers e afins, ficam mais claras muitas dúvidas sobre o enredo, o motivo pelo qual o herói ou heroína agiu daquela forma, dilemas e coisas da vida. Até mesmo as dúvidas sobre vocabulário vão se tornando mais cristalinas.

Se for poema, então, parece quase automático a sensação de que o “clima” da primeira vez foi plenamente recuperado. Não à toa, algumas pessoas choram quando releem seu poema favorito. É que a capacidade desse, nem sempre, pequeno artefato textual de trazer para a ponta dos dedos um instante bonito, ao mesmo tempo trágico e saudoso, exige algo diferente da ideia comum de racionalidade para ser explicado e entendido.

James Wood relembra em Como funciona a ficção (2011) que jovens leitores quase sempre não são bons observadores. Como prova, o próprio Wood relê seus comentários rabiscados nas margens dos textos lidos na adolescência, e conclui que costumava anotar informações na maioria das vezes “irrelevantes”, mas que deixava passar coisas que hoje ele julga “maravilhosas”. Mesmo que discordemos de suas conclusões, não podemos ignorar que foi do confronto da releitura de textos caros ao leitor Wood adolescente que acendeu a questão para o leitor Wood de agora.

A segunda vez proporciona a experiência de um ingresso numa verdadeira máquina do tempo em que duas versões, separadas no tempo e espaço, aparecem lado a lado, ou frente a frente, caso prefira.

Mas se engana o leitor pensando que as duas versões a serem confrontadas venham a ser a do autor ou do texto. É você, caro leitor do agora, sendo confrontado com aquele que você já foi um dia.

A releitura de um texto que já nos foi caro bagunça as engrenagens que põem em movimento a sensação de continuidade orgânica da vida, quebrando a ilusão de que há uma linha contínua entre o passado, o presente e o futuro.

Essa releitura traz à tona um ponto com o qual nem todos os leitores estão preparados para lidar. Pode ser que a segunda vez não desperte nada do que causou impacto pela primeira vez, o que faz com que seu leitor seja levado a duas conclusões muito distintas.

A primeira poderia ser expressa em uma sentença genérica mais ou menos assim, “sou uma pessoa diferente daquela, prova disso é que esse poema nem me deu vontade de chorar”. A segunda pode também assim ser expressa, “sou uma pessoa diferente daquela, prova disso é que esse poema nem me deu vontade de chorar”. Parecem iguais? Mas não são. A diferença é sutil e não está simplesmente nas palavras em fonte 12.

A diferença está um pouco na experiência própria do leitor e outro tanto naquilo que faz a literatura ser literatura, afinal. Ou seja, sua capacidade de por em confronto nossos diversos eus.

Muitos evitam essa segunda leitura de algum texto impactante do passado, pois ela traz à tona os termos de uma comparação inevitável de nós em relação ao que já fomos.

E, desse confronto, nossa versão de agora pode parecer mais durona, experiente e madura do que a passada, e por isso ela afirma altivamente que é “uma pessoa diferente daquela, prova disso é que esse poema nem me deu vontade de chorar”. Esse leitor do presente olha com certo orgulho para si mesmo no agora. O eu presente superou sua versão antiga e mais ingênua.

Assim como também pode ser uma versão saudosa de si, que enxerga aquele leitor do passado envolvido por uma aura perdida e irrecuperável. A incapacidade de recuperar plenamente aquilo que faz do passado algo tão especial se torna patente, e por isso então ele lamenta, “sou uma pessoa diferente daquela, prova disso é que esse poema nem me deu vontade de chorar”.


Este conteúdo, acessado em 10/17/2017, está publicado no site Homo Literaturus. Todas as informações nele contido são de responsabilidade do autor.
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