Disciplina - Lingua Portuguesa

Português

31/10/2018

A Descoberta do Mundo e a densidade existencial das crônicas de Clarice

Por Rafael Lucas Santos da Silva

A Descoberta do Mundo, coletânea de crônicas de Clarice Lispector, é mais do que um apanhado dessa face tão pouco falada da obra Clariceana. Parte disso se vê nesse texto, que faz uma ponte entre as incursões da autora nesse gênero e a angústia existencialista presente na obra de Jean Paul Sartre

A Descoberta do Mundo a partir das crônicas de Clarice

Como explicar as formidáveis crônicas publicadas no Jornal Brasil pela escritora Clarice Lispector? A produção de crônicas dela tende a ser considerada a outra face do trabalho artístico da escritora, por não se caracterizar, como nos romances, pela peculiaridade de “mergulhar em veios arqueológicos, em camadas afetivas culturalmente soterradas da sensibilidade humana”. Mesmo assim, há atualmente o consentimento de que são menos conhecidas pelo público do que os seus romances.

Por acaso o leitor já teve oportunidade de ler alguma das saborosas crônicas de Clarice?
Eu tenho minhas preferidas; e não hesito em indicar algumas delas: “O que é angústia”, “Submissão ao processo”, “Medo da eternidade”, “Condição humana”, “Medo de libertação”.

Todas essas crônicas encontram-se na coletânea intitulada A Descoberta do Mundo, publicada originalmente em 1984, reunidas a partir de sua colaboração semanal no Jornal do Brasil entre 1967 e 1973. É claro que esse não foi seu único trabalho na imprensa, também publicou nos jornais Comício e Correio da Manhã, nos quais utilizava os pseudônimos Tereza Quadros e Helen Palmer, respectivamente. Todo esse trabalho é extremamente fecundo e extenso, por isso o que hoje nos interessa é focar a coletânea A Descoberta do Mundo[i].

O gênero crônica é um exercício estético-estilístico autônomo, com poucas balizas, proporcionado bastante liberdade aos escritores que nela se arriscam. Através do veículo jornalístico a que pertence, a crônica está destinada à efemeridade. Avaliando a comunicação entre esse gênero e o leitor, Clarice afirma: “Escrever para o jornal não é tão impossível. É leve, tem que ser leve, e até mesmo superficial: o leitor, em relação ao jornal, não tem nem vontade nem tempo de se aprofundar”. Embora o gênero tenha o caráter despretensioso, nem sempre a autora de Paixão segundo G.H. escreveu suas crônicas de maneira leve. Sem dúvida, até 1973, as crônicas publicadas no Jornal Brasil e reunidas em A Descoberta do Mundo, em 1984, mais inquietavam do que distraiam os leitores.

A Descoberta do Mundo vai à filosofia

Assim, quero permitir aos leitores visualizarem a densidade existencial das crônicas de Clarice a partir de um diálogo com a filosofia existencialista sartreana[ii]. Ambos são dois escritores pelos quais tenho muito apreço. E essa relação entre os dois, no que tange os romances claricianos, foi argutamente explorada pelo crítico literário Benedito Nunes (1929-2011).

Jean-Paul Sartre (1905 1980) também possuiu um estreito vínculo entre literatura e filosofia, o que propiciou a consolidação do movimento existencialista. Segundo Sartre,

“O homem, tal qual um existencialista o concebe, se não é definível, é porque de início ele não é nada. Ele só será em seguida, e será como se tiver feito. […] O homem é não apenas tal como ele se concebe, mas como ele se quer, e como ele se concebe depois da existência, o homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo”.

Nessa perspectiva, Sartre (2011) propõe que a reflexão sobre a angústia está intrinsecamente ligada a liberdade, posto que o indivíduo, diante da gratuidade da existência, onde nada o acolhe ou o ajuda, deve criar suas próprias justificativas e essa liberdade que é dada ao homem se concretiza sob a forma do mal-estar da angústia. Trata-se de um mal-estar porque é a consciência de que o indivíduo é o seu próprio fundamento de valor, “em sua facticidade […] condenado a ser integralmente responsável por si mesmo”.

Na crônica “O que é angústia”, Clarice explora sentimentos relacionados a esse mal-estar:

“Angústia pode ser não ter esperança na esperança. Ou conformar-se sem se resignar. Ou não se confessar nem a si próprio. Ou não ser o que realmente se é, e nunca se é. Angústia pode ser o desamparo de estar vivo. Pode ser também não ter coragem de ter angústia — e a fuga é outra angústia”.

Após designar sentimentos que se relacionam à angústia, Clarice conclui: “Mas a angústia faz parte: o que é vivo, por ser vivo se contrai”. Dessa forma, temos a afirmação de que a angústia está situada dentro da existência, permanentemente.

Na crônica “Submissão ao processo”, de 1973, a vida é caracterizada como um processo. Palavra cuja acepção lhe dá o Dicionário Etimológico de Língua Portuguesa é: “Realização contínua e prolongada de alguma atividade”. Essa realização contínua e prolongada de viver, como concebe Clarice, é “de sentimento constante (não pensamento) que não conduz a nada, não conduz a nada, e de repente aquilo que se pensou que era ‘nada’ — era o próprio assustador contato com a tessitura do viver”. O emprego da palavra nada, a princípio, é o resultado dos constantes sentimentos que a vida provoca, nesse processo “feito de erros”. No entanto, a rigor, ocorre uma fundamental descoberta: o nada não é mais considerado como resultado. O nada é, agora, a própria “tessitura do viver”. Daí poder-se dizer que o nada é o contexto no qual se realiza o processo de viver.

No romance de Sartre intitulado A Náusea, essa experiência afetiva de compreensão sobre o processo de viver como gratuidade-do-ser-no-mundo é denominada náusea, que arrebata o corpo, manifestando-se por uma reação orgânica definida.

Uma experiência pela qual provavelmente o leitor já deve ter passado!

À essa experiência cáustica da existência podemos efetuar uma aproximação com a crônica “Medo da Eternidade”, de Clarice, na qual a escritora narra uma circunstância “aflitiva e dramática”. Trata-se de quando, pela primeira vez, teve a oportunidade de provar uma goma de mascar, que ganhou da irmã, junto com a seguinte explicação: “— Tome cuidado para não perder, porque esta bala nunca se acaba. Dura a vida inteira”. A sensação que lhe provocou, ao saber que a goma de mascar duraria eternamente, foi de estranheza: “— Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer. Examinei-a, quase não podia acreditar no milagre”. Essa sensação de estranheza perdura e, ao pôr a goma de mascar na boca, ela intensifica e “passa a constituir uma experiência do caráter injustificável da existência”:

“Assustei-me, não saberia dizer porquê. Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na verdade eu não estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da ideia de eternidade ou de infinito”.

Com a experiência “dramática e aflitiva” da goma de mascar, ocorre obscuramente a percepção da realidade da condição da existência. Assim, dentro da experiência da goma de mascar, com medo de que ela dure para sempre, traz-se à consciência a questão da perenidade da existência humana com relação à “ideia de eternidade ou de infinito”, — de forma equivalente à contingência do indivíduo com essa infinidade que o circunda. De acordo com Benedito Nunes, “como a angústia, a náusea […]” tem como “causa real o mundo, a existência”.

A experiência da contingência da existência revelada pela náusea, na criação literária de Sartre, torna-se teorização de seu tratado ontológico O Ser e o Nada como a apreensão existencial da liberdade revelada pela angústia.

A angústia em Clarice

O estudo da angústia é, pois, ponto crucial desse tratado que pretende explorar a “região delicada e requintada do Ser”, na e pela qual “vemos o nada irisar o mundo, reluzir sobre as coisas”. Assim nossa próxima abordagem para aproximar a escritora Clarice dos conceitos filosóficos propostos por Sartre será a partir da crônica “Condição humana”. Ela narra a pequena condição do indivíduo em face da infinita contingência do universo. Conforme o registro do Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa encontramos a seguinte acepção referente à “condição”: “Modo de Ser”. Esse modo de ser, como afirma Clarice, “não tem cura”. O que revela que Lispector concebe o modo de ser do indivíduo como um “descompasso com o mundo […] tão grande”, e portanto, jamais entrará em harmonia o indivíduo com a existência.

Nessa crônica, Clarice opõe contra o modo de ser do indivíduo o universo: “A condição do universo é tão grande que não se chama condição”. Aproximando-se, assim, dos argumentos de Sartre, para o qual há dois nadas. Sendo o primeiro o nada da consciência, e o segundo, o nada circunscrito na contingência do mundo, como deserto do destino humano. A preocupação do filósofo é, pois, com o primeiro sentido; conforme o filósofo: “eis aqui o nada sitiando o ser por todo o lado; eis que o nada se apresenta como aquilo pelo qual o mundo ganha seus contornos de mundo”. Com efeito, é o nada da consciência que fundamenta a conduta do homem, isto é, através da consciência que o mundo adquire significado para o indivíduo. Consequentemente, Sartre afirma que a consciência existe como consciência de liberdade:

[…] É na angústia que o homem toma consciência de sua liberdade, ou, se se prefere, a angústia é o modo de ser da liberdade como consciência de ser; é na angústia que a liberdade está em seu ser colocando-se a si mesma em questão.

Em Clarice encontra-se a afirmação, na já citada crônica “O que é angústia”, de que a angústia está situada dentro da existência, permanentemente.

Uma das acepções descrita pela escritora aproxima-se do filósofo: “ser o que realmente se é, e nunca se é”. Enquanto para Sartre: “Chamaremos precisamente de angústia a consciência de ser seu próprio devir à maneira de não sê-lo”. Para identificar como a escritora descreve a liberdade, voltemos à crônica “Condição humana”, na qual afirma que o modo de ser do indivíduo é pequeno, a ponto de lhe constranger. Palavra cuja acepção lhe dá o Dicionário Etimológico de Língua Portuguesa é: “apertar”, “tolher os movimentos”. Semelhante, por conseguinte, a sua afirmação: “mas angústia faz parte: o que é vivo, por ser vivo se contrai”.

Daí poder-se dizer que Lispector assume a relação entre angústia e liberdade, pois na sequência da crônica diz: “Sinto-me constrangida. A ponto de que seria inútil ter mais liberdade”. Assim, a rigor, temos a expressão do sentimento de não querer mais liberdade de agir, já que a liberdade implica angústia; que a angústia inserida no modo de ser do indivíduo é tamanha, a ponto de se considerar que ela “não deixaria fazer uso da liberdade”.

Paradoxal? Será que o leitor já se sentiu constrangido? Imobilizado pela liberdade?

Essa consideração de não poder “fazer uso da liberdade” é, para Sartre, uma característica da “existência do nada que se insinua entre os motivos e o ato”. E acrescenta: “Convém sublinhar aqui que a liberdade manifestada pela angústia se caracteriza por uma obrigação perpetuamente renovada de refazer o EU que designa o ser livre”.

Essa perpetua apreensão da liberdade descrita por Sartre, a encontramos na crônica “Condição humana”: a saber, pelo relato das tentativas da escritora de “acertar o passo” com o mundo: “já tentei me pôr a par do mundo”. E apesar de permanecer em “descompasso”, continuadamente tenta “acertar o passo”, explica Lispector: “Me torno séria e quero andar certo com o mundo, então me estraçalho e me espanto. […] Que só não é um mal porque é de minha condição”.

O fato, pois, de se estraçalhar e espantar-se, sobreleva a questão da angústia, “que lhe inspira o espetáculo injustificável, gratuito, incontrolável, da existência em ato”. Evidentemente, a afirmação que esse é o modo de ser do indivíduo tem proximidade com Sartre, para o qual o indivíduo capta-se “ao mesmo tempo como totalmente livre e não podendo evitar que o sentido do mundo provenha de mim”:

“[…] O homem acha-se sempre separado de sua essência por um nada. […] A essência é tudo que a realidade humana apreende de si mesmo como tendo sido. E aqui aparece a angústia como captação de si-mesmo na medida em que este existe como modo perpétuo de arrancamento àquilo que é; ou melhor, na medida em que o si-mesmo se faz existir como tal”.

Com base nas crônicas utilizadas como exemplo, é fácil perceber que, a partir dos argumentos de Sartre, as experiências narradas nas crônicas de Clarice Lispector formam uma visão de mundo que se aproxima da filosofia existencialista sartreana.

Obviamente que os exemplos são poucos, comparados com as centenas de crônicas que compõem a coletânea A Descoberta do Mundo. Ora, minha hipótese é de que podemos pensar que essa visão de mundo perpassa todas as coletâneas, em algumas de forma mais sutil, porém em todas a manifestação dos sentimentos de liberdade, da angústia e da gratuidade-do-ser-no-mundo. Convido o leitor para que venha testá-la. Mesmo que discorde, o importante será o contato com a beleza de vários dos relatos que Clarice fornece nessas crônicas.

[i] Todas as citações posteriores de crônicas de Clarice Lispector foram retiradas de: A Descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
[ii] SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o Nada: Ensaio de ontologia fenomenológica. Rio de Janeiro: Vozes, 2011. Todas as citações do filósofo francês são baseadas nesta edição.

Este conteúdo, acessado em 31/10/2018, está publicado no site Homo Literaturus. Todas as informações nele contido são de responsabilidade do autor.
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