Disciplina - Lingua Portuguesa

Português

10/03/2010

Cronistas do cotidiano

Foto do escritor José de AlencarJosé de Alencar & Manoel Carlos: cronistas do cotidiano/Editora Escala Revista Literatura
Separados por mais de dois séculos, o autor romântico José de Alencar e o teledramaturgo Manoel Carlos têm perfis literários paralelos.
por Leide Oliveira
Tanto o romancista José de Alencar quanto o teledramaturgo Manoel Carlos, mesmo pertencendo a escolas literárias e épocas totalmente opostas, possuem uma característica em comum: ambos escreveram enredos que giram em torno de personagens femininas com personalidades difíceis de observar devido à condição que elas tinham perante a sociedade. Mulheres com poder de decisão e personalidade forte, como é o caso das Helenas, das telenovelas de Manoel Carlos, e das personagens Aurélia, Lúcia e Emília, das obras Senhora, Lucíola e Diva, respectivamente, de José de Alencar.
Observa-se, ainda, que Manoel Carlos é um autor que trata em suas tramas de assuntos do cotidiano da sociedade em que está inserido, não fugindo à nossa realidade atual. Vale ressaltar também que, em pleno século XXI, as mulheres já alcançaram um poder de igualdade perante os homens, cabendo-lhes os mesmos direitos e deveres que a estes cabem. Manoel Carlos escreve suas novelas para um público que se identifica com elas, havendo, portanto, uma verossimilhança nas suas obras, uma vez que, na atualidade, é possível encontrar perfis femininos iguais aos de suas personagens Helenas. Manoel Carlos tem como enredo básico o retrato de inúmeras mulheres que habitam os centros urbanos do Brasil, enfocando em suas personagens histórias verdadeiras, com características que não fogem do cotidiano, ou seja, mentem, trapaceiam, traem e são traídas, supostamente por amor, sendo que estas características são identificadas por toda mulher que assiste a suas novelas.
Outro fator que vale ressaltar são os temas secundários abordados em suas tramas. Manoel Carlos trata sobre os avanços e os males do mundo atual, como a melhoria da medicina na cura de algumas doenças, como foi o caso da personagem Camila, da telenovela Laços de Família, que sofria de leucemia, além de diversos outros temas pertinentes aos dias atuais.
Portanto, Manoel Carlos pode ser considerado um cronista do cotidiano. Da mesma forma, José de Alencar escrevia sobre diversos temas, levantando um panorama social e histórico do Brasil. Considerado urbano ou citadino, possui romances de intriga, de entretenimento, de namoro adolescente, girando sempre em torno do amor e do dinheiro, para José de Alencar duas forças igualmente poderosas, mas sem deixar de lado o figurino romântico, inserindo a moralidade e a honra, como faz em Senhora.
Para muitos, José de Alencar é considerado um gênio em nossa literatura; já para outros, é apenas um contador de histórias para adolescentes, rebaixando-o à condição de popular. O que se sabe apenas é o incontável número de edições de suas obras e que ele é um dos autores mais lidos até hoje.
O nosso maior autor romântico é um patriota de coração, que escrevia sobre nossa história e peculiaridades, tendo aversão ao que é estrangeiro. Tratava, em suas obras, de assuntos pertinentes ao contexto histórico em que estava inserido, como é o caso da abolição da escravatura, ou a importância da honra masculina perante a sociedade, como vê-se nas obras Senhora e Lucíola. Portanto, José de Alencar também pode ser considerado um cronista do cotidiano. Porém, se observarmos atentamente a personalidade de suas personagens femininas, podemos afirmar que, neste aspecto, José de Alencar pode ser considerado um cronista não do seu tempo, e sim do nosso. Afinal, ele viveu em um mundo altamente patriarcal, onde cabiam aos homens todos os direitos e poderes de decisão, e às mulheres apenas a tarefa de donas de casa e de responsável pela educação dos filhos. Elas não tinham sequer o direito ao voto na escolha dos governantes, tratadas como incapazes de opinar sobre qualquer decisão.
É nesse contexto que se pode afirmar que, nas obras de José de Alencar, não havia verossimilhança com a realidade da época, pois suas protagonistas femininas, que possuem sempre características muito parecidas, eram todas elas mulheres de força, decisão, personalidade e, acima de tudo, fora dos padrões femininos do século XIX.
José de Alencar traçava perfis femininos “fantasiosos”, visto que a sociedade burguesa da época não permitia às mulheres tais demonstrações de personalidade.
Está claro que José de Alencar e Manoel Carlos possuem um “perfil feminista” parecido na construção de suas personagens protagonistas. Contudo, existe um ponto importante a ser abordado aqui. É bem verdade que Aurélia, Lúcia, Emília e as Helenas possuem todas as características citadas, porém, o motivo pelo qual cada uma delas demonstra sua personalidade e poder de decisão não é o mesmo. É preciso levar em consideração que José de Alencar foi um ficcionista da Escola Literária Romântica e, portanto, trabalhou o “eu” interior como conflito em suas obras, uma vez que suas personagens não tinham nenhum obstáculo a ser enfrentado, a não ser seus próprios conflitos internos. Tanto é verdade que nenhuma das suas obras aqui citadas possui personagens antagonistas.
Em contrapartida, Manoel Carlos, apesar de abordar o mesmo perfil feminino de José de Alencar — é importante frisar a Escola Literária Pós-Moderna que o autor está inserido — criou suas Helenas com barreiras a serem superadas em prol de pessoas de seu convívio, ou seja, colocaram a satisfação alheia à frente de seu egoísmo. Diferente do perfil feminino de José de Alencar, as Helenas não possuíam conflitos internos, suas demonstrações de poder e decisão giravam em torno de terceiros.
José de Alencar e Manoel Carlos são dois brilhantes autores que, de maneira muito parecida e magistral, sempre abordaram temas polêmicos e que levassem à reflexão, indo muito além de suas épocas, tornando-se sempre atuais nos assuntos do cotidiano.
Leide Oliveira é licenciada em Letras pela Faculdade de Macapá. leidevonlins@hotmail.com
Este conteúdo foi acessado em 10/03/2010 no sítio Editora Escala Uol.Todas as modificações posteriores são de responsabilidade do autor original da matéria.
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